A crise da água está prestes a chegar a proporções catastróficas. A escassez deste recurso natural pode resultar em violência, saques. É o que diz a prefeitura de São Paulo, de acordo com coluna de Monica Bergamo, na Folha de São Paulo de 29 de janeiro [de 2015].
No caso de conflitos, os mais atingidos são sempre quem está mais próximo do local — os prefeitos — ainda que seja ao governador sobre quem deve recair a responsabilidade mais direta no caso. Nesse sentido, diversos prefeitos alertam para a explosão de violência em decorrência da escassez, conforme noticiou o Valor [jornal Valor Econômico]: “temem os problemas gerados a partir do racionamento, como o aumento do número de doenças provocadas pela água impura e saques de água pela população desabastecida, com o aumento da violência”.
Acontece que um dos desastres provocados pela crise hídrica tem sido a despolitização do problema. Não causa espanto a crise ocorrer em uma cidade tropical [São Paulo] com alto índice pluviométrico. E a velha questão da turbulenta relação entre população e recursos naturais volta à tona.
Esse argumento provocado pelos prefeitos afetados pela crise da água — a escassez vai provocar violência — segue a tônica daquele construído pelo padre inglês Thomas Malthus [1766-1834]. O aumento da população leva ao esgotamento dos recursos. A terra não poderia prover o necessário para o consumo crescente: enquanto gente cresce de maneira geométrica, a terra provê em aumento aritmético. Uma verdade despolitizada que constitui a linha geral da catástrofe Malthusiana – agora, pretendem uns, do caso paulistano.
Marx [Karl Marx, 1818-1883] respondeu Malthus. Trouxe mais problemas pra mesa para contrapor essa “verdade”. Problemas sociais, econômicos, históricos. A produção de desigualdades. Ao desconsiderar as relações sociais de exploração e de concorrência que produziram fome — em São Paulo, a falta d’agua —, Malthus, assim como a prefeitura de São Paulo, o governo e grande parte da imprensa percebem um resultado da operação de leis inexoráveis da natureza. Culpa da chuva ou de um santo (Pedro). Mas não: é o problema da acumulação de capital e do jogo político.
É o capitalismo.
Apesar de Marx ter respondido ao argumento, ele se reconstruiu com o neomalthusianismo. O artigo do ecólogo Garrett Hardin, publicado em 1968, reconstruiu a “tragédia” dos recursos naturais. Escreveu ele que o “problema” da população e dos recursos não teria solução técnica, mas precisaria de uma extensão moral [do cidadão] — igualmente despolitizada.
O geógrafo britânico David Harvey respondeu a Hardin em 1974. Utiliza novamente Marx contra o argumento neomalthusiano e aponta o problema da “ideologia das ciências”, a “neutralidade da ciência”.
“Ao fundamentar o problema a partir da superpopulação”, escreve Harvey, “muitos analistas fazem um contive à política da repressão que, invariavelmente, parece estar relacionada ao argumento Malthusiano, quando as condições econômicas são tais que tornam esse argumento extremamente atrativo para a classe dominante”.
Ou seja: porrada nos pobres. PM e Rota [Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, o batalhão de choque paulistano] contra “a violência” da exclusão ou da subcidadania. Contra os “saques” — não o do agronegócio, mas o do desesperado em busca de água. Não o saque das mineradoras e das indústrias, mas dos trabalhadores sem água para sobreviver.
É o que se desenha em São Paulo. Esqueça que o agronegócio consome dois terços da água. Que a indústria beba talvez 20%, até 30%. E as residências, menos de 10%. Ainda assim, devemos esquecer as piscinas nos Jardins, no Morumbi, o banho na calçada, o banho no SUV [Sport Utility Vehicle], os quatro banheiros da casa. Foque a atenção no chuveiro elétrico da periferia comprado em prestações: é este o elemento “violento” que vai sofrer na mão da PM.
Nos anos 1990 (auge neoliberalismo), a suspeita de que a escassez de recursos poderia provocar conflitos violentos no âmbito internacional ganhou um novo suspiro, notadamente pelo grupo do canadense Thomas Homer-Dixon. Publicou livros, organizou seminários, treinou pesquisadores para dizer que, com o alerta de que recursos naturais vão acabar em decorrência do aumento da população, um Mad Max [filme de 1979, em que uma gangue de motoqueiros vandaliza uma cidade do interior da Austrália, em um futuro de falência do Estado] global vai ser instaurado. Renovou Malthus no seio do neoliberalismo. Tratou de sempre deixar de lado o contexto sócio-político, histórico e econômico, e atribuir à natureza a causa de conflitos sociais.
A resposta veio por um grupo de pesquisadores em Berkeley, Nancy Peluso e Michael Watts. Organizaram um seminário e publicaram um livro, Violent Environments [algo como Meio Ambiente Violento ou Condições Violentas] (2001), no qual, com fundamento na economia política e relações sociais, respondiam a Homer-Dixon.
O trabalho desenha a violência como um fenômeno conectado com processos amplos de transformações materiais e relações de poder.
Com a crise climática global tendo ascendido, renovou-se a dinâmica entre população e recursos, com o uso de Malthus, ou um exame, de cunho marxista, levando-se em conta as dinâmicas locais, as relações de poder e as transformações materiais.
Nesse sentido, um projeto europeu, chamado Clico, investigou se as mudanças climáticas poderiam provocar conflitos, especialmente por problemas hídricos. O problema, escrevem os pesquisadores, é a “democracia” e as “boas instituições”. Essas sim são as grandes variáveis. Utilizando ferramentas da ecologia política, o grupo de diferentes universidades, coordenado pela Universidade de Barcelona, encontrou algo que pode inspirar o debate no Brasil:
“Descobrimos que os projetos de desenvolvimento em larga escala, liderados pelo Estado, muitas vezes conduzidos em nome da adaptação às mudanças climáticas, terminam por aumentar a insegurança em alguns grupos populacionais, muitas vezes aqueles que são os mais marginalizados econômica e politicamente.”
Com base na experiência relatada nesses casos, o que São Paulo mais precisa, urgentemente, não é da transposição física de reservatórios secos para outros secos, secando ainda mais bacias no seu entorno. Transpor as águas do Paraíba do Sul, já seco pelo consumo exploratório (com 1,7% do volume!), para o Sistema Cantareira (com cerca de 5% do volume!), deve apenas piorar a situação e afetar mais gente e mais o ambiente.
É preciso uma “transposição política”, com forte impacto nas relações econômicas e de desigualdade social. Transpor a oligarquia que controla os mecanismos de poder e esgotam os recursos naturais para um mesmo nível de igualdade nas relações políticas da grande população que sofre esses desmandos.
Faltariam guilhotinas caso o povo soubesse o que acontece. No entanto, violência é uma péssima forma de transformar o sistema político. O povo deve ser mais inteligente, e menos violento, que o seu governante.