Em cento e dezoito anos de regime republicano no Brasil, cerca de setenta transcorreram sob regimes autoritários ou abertamente ditatoriais. Quarenta anos de república oligárquica e duas ditaduras de quinze anos cada, levaram a conflitos civis e militares, confrontos armados, prisões, torturas e assassinatos políticos, a causarem danos materiais e morais a milhares de cidadãos e suas famílias, que vêm sendo parcialmente reparados por medidas de governo, proposições legislativas e sentenças judiciais, às vezes incompletas, discriminatórias e permeadas por privilégios sociais e de classe.
A vitória da Revolução de 1930 marca a consolidação do instituto da anistia, no período republicano, com a reintegração, ao serviço público, dos participantes do Tenentismo. Também as vítimas daquele movimento insurrecional, em seus estratos vinculados às classes dominantes, foram anistiados e materialmente ressarcidos: desde os donos de jornais, residências e outras propriedades, depredadas e saqueadas durante os acontecimentos de outubro de 1930, passando por líderes civis e militares do Movimento Constitucionalista de São Paulo, em 1932, e pelos signatários do Manifesto dos Mineiros, entre os episódios mais conhecidos. O regime da Constituição de 1946 foi precedido de anistia política aos presos e perseguidos da ditadura do Estado Novo, sem reparações econômicas significativas ou retorno ao serviço público da grande maioria dos atingidos.
O novo ciclo ditatorial, iniciado em 1964, caracterizou-se por uma profusão de atos punitivos sobre amplos setores da sociedade, sem precedentes em qualquer período de nossa história, mediante a violação das garantias constitucionais, das liberdades individuais e coletivas e dos direitos humanos. O País já se assentava, então, numa organização jurídica complexa, decorrente do próprio desenvolvimento capitalista, que ganhara impulso desde os anos trinta do século passado. Daí os atos de arbítrio também contra o Poder Judiciário, cujas garantias de independência, inamovibilidade e vitaliciedade foram removidas.
Cassações de mandatos eletivos, demissões de servidores civis e militares e trabalhadores de empresas privadas, intervenções nos sindicatos e nas relações de trabalho, proibição às greves, ao direito de reunião e à organização de partidos políticos, prisões, torturas e assassinatos, atingiram milhares de brasileiros, que desde então reclamam reparações morais e financeiras.
O retorno ao estado de direito culminou na Constituição de 1988, cujo art.8, das Disposições Transitórias, regulamentado pela lei 10559, de 13/11/2002, criou reparação econômica indenizatória, a todos os atingidos por punições políticas, cujo exame ficou a cargo de uma Comissão de Anistia, no âmbito do Ministério da Justiça, cabendo o deferimento ao titular da Pasta.
Embora com efeitos financeiros a partir de outubro de 1988, o benefício legal, retroativo a setembro de 1946, abrange as vítimas da ditadura do Estado Novo, cuja anistia, já mencionada acima, teve limitações notórias, sobretudo para os trabalhadores e as camadas intermediárias, além de reparar medidas autoritárias de governos subseqüentes, vindo a cobrir um período de quarenta e dois anos de punições políticas.
Decorridos quase cinco anos do funcionamento da referida Comissão, cerca de trinta mil processos, muitos encaminhados ainda nos primeiros meses de 2003, ainda não foram examinados. Vai-se criando, desse modo, um impasse decorrente de limitações orçamentárias e resistências políticas, que dificilmente serão vencidas sem o apoio da sociedade.
Nesse sentido, certa orquestração da mídia, e até um projeto de lei, apresentado no Senado, tendentes a questionar a legislação da Anistia, amparada no texto constitucional, não ajudam a solucionar uma questão eminentemente política, decorrente do longo período autoritário. Claudia Safatle, em sua Coluna no jornal Valor Econômico (19/10/2007), menciona gastos de novecentos milhões de reais com os anistiados, entre 2003 e 2006, uma pequena fração dos seiscentos bilhões, no mesmo período, em juros da dívida pública, pagos pelo atual governo.
Aos anistiados e suas associações, cabe uma reflexão madura sobre o assunto, sem renunciar a seus direitos, mas sem ambições materiais desmedidas e sem revanchismos, que os isole da opinião pública e das lutas do povo pela democracia e o progresso social.
(*) Fausto Nascimento foi sindicalista do BB em Niterói e Região e, atualmente, é conselheiro da Associação de Antigos Funcionários do banco.